Marina
Colasanti (Asmara, 26 de setembro de 1937) é uma escritora, jornalista e
tradutora ítalo-brasileira nascida na então colônia italiana da Eritreia.
Seu primeiro livro foi lançado em 1968 e se chama "Eu sozinha".
Seu livro de contos "Uma ideia toda azul" recebeu o prêmio O Melhor para o Jovem, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
Em 2010, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro "Passageira em trânsito".
Neste vídeo, Antônio Abujamra recita o poema "Eu sei, mas não
devia", de Marina Colasanti.
Assista ao vídeo:
EU SEI, MAS
NÃO DEVIA
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista
que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não
olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de
todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender
mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A
tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não
pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A
sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A
deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso
ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado
quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a
lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as
coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver
anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir
publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável
catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro
de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na
luz natural. Às bactérias da água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas,
tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma
revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no
resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e
torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando
no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai
dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se
acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente
se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto
acostumar, se perde de si mesma.