Estética: reflexões sobre o papel da beleza e da arte



Por Vânderson Domingues* 


O Bom, o Belo e o Verdadeiro formam a mais famosa tríade da filosofia. Uma tríade que relaciona corpo, alma e espírito. O corpo busca a sensação do que é Bom, a alma busca a Beleza e o espírito busca a Verdade.

 

No que diz respeito ao Belo, o filósofo Platão, da Grécia Antiga, definia como sendo toda ideia (o inteligível e o mundo sensível). Ele compreendia o Mundo das Ideias como superior e onde habitariam ideias perfeitas (o Bom, o Belo e o Verdadeiro). Para o filósofo, as obras de arte eram apenas simulacros do mundo visível que, por sua vez, seria cópia do mundo das ideias. Abria exceção apenas para a poesia. Em sua concepção de cidade ideal, por exemplo, os artistas – que não conheciam o Belo, pois apenas copiavam o visível – seriam expulsos porque poderiam confundir as pessoas sobre o que é certo e o que não é.

 

Porém, Aristóteles, discípulo de Platão, divergia da concepção do mestre. Aristóteles acreditava no poder da experiência como forma de conhecer através da observação e dos cinco sentidos. Em sua obra A Poética, o filósofo deixou claro que compreendia que a Arte tem o potencial de propiciar algo prazeroso e, por isso, ela era positiva. Ele interpretava a identificação humana com a Arte como um processo de catarse, quando colocamos para fora o que nos angustia ou nos deixa felizes.

 

A partir disto, as concepções de Platão e Aristóteles foram levadas adiante adentrando a Idade Média em ressiginifcações feitas por dois outros notórios pensadores históricos, o teólogo Agostinho de Hipona (mais conhecido como Santo Agostinho) e o teólogo e filósofo Tomás de Aquino. Neste período, houve duas predominantes visões sobre a Beleza.

 

A primeira visão, de Agostinho de Hipona, mais próxima da visão de Platão. Para o ele, a Beleza não se encontrava na arte, mas na manifestação de Deus no ser humano. Isso corrobora com a visão de maior parte da Idade Média, quando o artista era visto apenas com um trabalhador que dominava uma técnica em detrimento do status elevado que muitos artistas ganharam na modernidade. A segunda perspectiva, de Tomaz de Aquino, recupera a filosofia de Aristóteles. Para o frade, a Beleza emanada de Deus poderia aparecer na matemática e nas proporções da arquitetura das igrejas. No final da idade média, a influência de Tomás de Aquino contribuiu para que a Beleza fosse compreendida como sinônimo do ideal divino, de Deus. A arte e a arquitetura nos templos medievais, por exemplo, eram religiosas e uma forma de aproximação com a beleza divina e se converter ao cristianismo.

Já na era moderna, para o filósofo Immanuel Kant, o Belo poderia ser percebido por si próprio e não é o único valor estético. Para ele, a experiência estética (do Belo) se impõe através da arte quando não esperamos nada dela como quando nos “deixamos levar” ao ouvir uma sinfonia de Beethoven, por exemplo. Para Kant, o Belo é concebido a partir de nossa representação interna e é uma forma de beleza ideal e imaterial. Está na subjetividade, na impressão pessoal do espectador em dado momento. Para o filósofo, entretanto, há ainda o Sublime que transcende o Belo e é “o que eleva” e provoca sensações ligadas a aspectos incomensuráveis, tais como o “estado da alma” perante fenômenos da natureza (como o toque das gotas de chuva em meio a uma tempestade e a admiração contemplativa diante um pôr do sol).

 

Na contemporaneidade, os padrões de beleza passaram a ser questionados. Nesse sentido, Nietzsche trouxe uma colaboração importante utilizando as figuras dos deuses gregos Apolo e Dionísio como representação da dualidade humana. Apolo simboliza a razão, a beleza e a ética de forma contida e organizada. Dionísio remete a embriaguez, ao caos, a falta de medida e à paixão. Nietzsche compreendia o princípio Apolíneo-dionisíaco como opostos de forças que se complementam. Para ele, nós precisamos da ordem e harmonia tanto quanto do disforme e do desvario, nisto estaria o equilíbrio, a autenticidade e a Beleza.


No entanto, como ser social e cultural, o ser humano busca compartilhar o valor estético daquilo que percebe como Belo. Assim, ao expressar o valor estético o admirador espera que este juízo seja reconhecido pela coletividade e procura oferecer razões que embasem o juízo do gosto auto estabelecido. Desta forma, o espírito investigativo das reflexões sobre a Beleza se expandiram também para o campo científico e vários estudos procuram decifrar o julgamento que está por trás da beleza. Um estudo publicado na Current Biology comprovou que muito do que atrai as pessoas (considerado como Belo) é determinado por experiências individuais, o que corrobora, até certo sentido, à percepção da filosofia kantiana.

 

Destarte, por séculos, poetas, músicos e musicistas, escultores e escultoras, pintores e pintoras procuram representar o Belo através da arte (ou do fazer artístico), na simples e árdua tentativa de perpetua-lo e expressá-lo. Entretanto, em tempos atuais, com uma indústria-cultural de forte mentalidade utilitarista em sinergia com o capitalismo que nos vende que tudo deve ser útil e próprio para o consumo, esta não é uma tarefa fácil.

 

O utilitarismo e o capitalismo “transformam” o Belo, o Sublime e a Arte em produtos vendáveis de entretenimento: reduz a música de Beethoven à “música ambiente”, reproduz cópias do pensador de Rodin e fotocópias dos girassóis de Van Gogh como se fossem meros objetos de decoração e recorta versos descontextualizados de Cecília Meireles para posts de redes sociais com intuito de ganhar likes. Em outras palavras, a arte deve servir para o mercado varejista: lazer, entretenimento e ou diversão. Deste modo, “tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho de sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse se não vender” [1].

 

Tal perspectiva restringe a arte a somente um objeto que nos sirva e, muitas vezes, “banaliza a expressão artística e intelectual em lugar de difundir e divulgar a cultura, o que acaba vulgarizando as artes” [1]. Além disso, reduz a arte a algo sensabor, pois faz dela um mero artifício que precisa ser copiado em série, perdendo-se assim o fazer artístico e a sua consequente apreciação como desbravamento de horizonte e contemplação do Belo.

 

Se Platão e Agostinho de Hipona estivessem vivos talvez se assustassem em como nos afastamos do Belo com o simulacro do simulacro da Verdade a que convertemos a arte copiada para as massas. Se Aristóteles e Tomás de Aquino estivessem entre nós talvez se lamentassem pela vulgarização da arte e o quanto isto dificulta nosso processo poderoso da experiência de catarse e, na releitura de Tomás, de aproximação com Deus. Se Kant caminhasse em nossa época, talvez tivesse dificuldade em aceitar como nos tornamos tão padronizados e subjugados aos valores de mercado em relação ao Belo e anestesiados para percebermos o Sublime. Se Nietzsche habitasse em nosso tempo, talvez diagnosticasse em seu semelhante a decadente inautenticidade na busca por um ideal massificado de beleza em postagens de redes sociais. 


Porém, mesmo com todas as distorções e reducionismo do utilitarismo e do consumo a arte resiste e mantém o seu papel de importância. Talvez por precisarmos da contemplação do que é Belo, da comunicação com o que é sensível, com o que transcende e que nos faz experienciar sensações indescritíveis e torna a nossa existência mais significativa.

 

Como diria Ferrera Gullar, “a arte existe porque a vida não basta” e por isso talvez a arte venda tanto ainda que industrializada e, por vezes, quase insossa. Talvez mesmo em meio a tanta distorção e caminhos tortuosos que a complexidade coletiva construiu ainda exista algo na arte que nos remeta a busca pelo momento raro do que é Belo.

 

Por tudo isto, é possível considerarmos a arte como uma expressão que busca representar o Belo, mas que nem sempre isto acontece devido a interesses de produção que fogem do fazer artístico. Ainda assim, é possível experienciá-lo, mesmo considerado raro, por meio da arte. E, talvez, esta busca pelo o que é Belo seja inerente à condição humana por tornar a nossa vida com mais sentido e nos remeter a uma percepção conclusiva: - Sim, a beleza e a arte [ainda] importam!

*Vânderson Domingues é orientador filosófico, escritor, compositor e poeta. Graduado em Filosofia e pós-graduado em Clínica Existencialista Sartriana.

 

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REFERÊNCIAS:

 

[1] GODOI, Vânderson Domingues. As formas de utilização do Marketing na Indústria Cultural e seus impactos sociais. 2003. Monografia (Bacharelado em Marketing) - Marketing, Estácio/FIB, Salvador, 2003.

 

A BELEZA como valor universal. 2012. Disponível em: <http://filosofiaportal.blogspot.com/2012/08/a-beleza-como-valor-universal.html>. Acesso em: 14 dez. 2018.

AMED, Fernando. Estética: Consolidando o conhecimento. 2018. 37 p. Didático (Filosofia)- Humanas, Universidade Santo Amaro, São Paulo, 2018. 1.

 

APOLÍNEO e dionisíaco: a criatividade segundo Nietzsche. 2017. Disponível em: <http://www.netmundi.org/filosofia/2017/os-conceitos-de-apolineo-e-dionisiaco-de-nietzsche/>. Acesso em: 14 dez. 2018.

 

DE SOUZA TACONELI, Aline; MARTINS DOURADO, Wesley Adriano. Apolo e Dionísio: opostos complementares e o processo de individuação a partir de Jung e Nietzsche. 2015. 33 p. Artigo (Filosofia)- Filosofia, Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2015. 7. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/view/5616/5373>. Acesso em: 14 dez. 2018.

 

DEMARTINI, Marina. Ciência prova que a beleza está nos olhos de quem vê. 2015. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/ciencia/ciencia-prova-que-a-beleza-esta-nos-olhos-de-quem-ve/>. Acesso em: 14 dez. 2018.

 

FERREIRA, Gabriel. Por que a beleza importa? (Parte III) – O Bom, o Verdadeiro e o Belo. 2017. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/por-que-a-beleza-importa-iii/>. Acesso em: 14 dez. 2018.

 

GUSMAN, Danielle. O belo e a arte. 2ª. 2016. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/1177724>. Acesso em: 14 dez. 2018.

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