O desespero humano | Por Soren Kierkegaard



O desespero humano (Sygdommen til Døden em dinamarquês, literalmente "A Doença até à Morte") é um livro escrito pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus. Trata o conceito de desespero de Kierkegaard, equiparado ao conceito cristão de pecado. Muitos dos termos utilizados nesta obra mostram um conexão inegável com os conceitos utilizados mais tarde por Freud.

 

Leia um trecho:

 

"Desespero virtual e desespero real

O desespero será uma vantagem ou uma imperfeição? Uma coisa e outra em pura dialética. A só considerarmos a idéia abstrata, sem pensar num caso determinado, deveríamos julgá-lo uma enorme vantagem. Sofrer um mal destes coloca-nos acima do animal, progresso que nos distingue muito mais do que o caminhar de pé, sinal da nossa verticalidade infinita ou da nossa espiritualidade sublime. A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser suscetível de desesperar, a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar-se.

 

Assim há uma infinita vantagem em poder desesperar, e, contudo, o desespero não só é a pior das misérias, como a nossa perdição. Habitualmente a relação do possível com o real apresenta-se de outro modo, porque, se é uma vantagem, por exemplo, poder-se ser o que se deseja, maior ainda é sê-lo, isto é: a passagem do possível ao real é um progresso, uma ascensão.

 

Com o desespero, pelo contrário, há uma queda do virtual ao real, e a margem infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda. Não desesperar é pois elevar-se. Mas a nossa definição é ainda equívoca. A negação, aqui, não se assemelha ao não ser manco, não ser cego, etc... Pois que, se não desesperar equivale à absurda ausência de desespero, o progresso, nesse caso, será o desespero. Não estar desesperado deve significar a destruição da possibilidade de o estar: para que um homem não o esteja verdadeiramente, é preciso que a cada instante aniquile em si a sua possibilidade. Habitualmente, é outra a relação do virtual com o real. É verdade os filósofos dizerem que o real é o virtual destruído; sem grande exatidão contudo, pois que é o virtual plenamente realizado, o virtual agindo. Aqui, pelo contrário, o real (não estar desesperado), por conseqüência uma negação, é o virtual impotente e destruído; ordinariamente o real confirma o possível, aqui nega-o.

 

O desespero é a discordância interna duma síntese cuja relação diz respeito a si própria. Mas a síntese não é a discordância, é apenas a sua possibilidade, ou então implica-a. De contrário não haveria sombra de desespero, e desesperar não seria mais do que uma característica humana, inerente à nossa natureza, ou seja, que o desespero não existiria, sendo apenas um acidente para o homem, um sofrimento como uma doença em que se soçobrasse, ou, como a morte, nosso comum destino. O desespero está portanto em nós; mas se não fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se esta não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza.

 

De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo próprio, pois Deus, fazendo que o homem fosse esta relação, como que o deixa escapar da sua mão, de modo que a relação depende de si própria. Esta relação é própria, o eu, e nela jaz a responsabilidade da qual depende todo o desespero, desde que existe; da qual ele depende a despeito dos discursos e do engenho dos desesperados em enganarem-se e enganar os outros, considerando-o como uma infelicidade? como no caso da vertigem que o desespero, se bem de natureza diferente, evoca sob mais que um ponto de vista, a vertigem estando para a alma com o desespero para o espírito e abundando em analogias com ele."

 

Soren Aabye Kierkegaard. O desespero Humano. Traduções de Carlo Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984, (Os Pensadores)

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