A microfísica do poder, de Foucault

Foucault


"A Medicina, a Psiquiatria, a Justiça, a Geografia, o corpo, a sexualidade, o papel dos intelectuais e o Estado são analisados por Foucault em vários artigos, entrevistas e conferências reunidos neste livro. Todos os textos têm como tema central a questão do poder nas sociedades capitalistas: sua natureza, seu exercício em instituições, sua relação com a produção da verdade e as resistências que suscita. O método genealógico desenvolvido por Foucault evidencia a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas e indispensáveis à sua sustentação e atuação eficaz. E à medida que o poder não está localizado exclusivamente no aparelho de Estado, diz Foucault, "nada mudará a sociedade, se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado em um nível muito mais elementar, no cotidiano, não forem modificados".

 

Leia um trecho:

 

"A CASA DOS LOUCOS


No fundo da prática científica existe um discurso que diz: nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente à espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar. Mas achamos também, e de forma tão profundamente arraigada na nossa civilização, esta idéia que repugna à ciência e à filosofia: que a verdade, como o relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de emboscá-la e a habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares privilegiados, não só para sair da sombra como para realmente se produzir. Se existe uma geografia da verdade, esta é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la. Sua cronologia a é a das conjunções que lhe permitem se produzir como um acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para percebê-la, como por entre duas nuvens. Poderíamos encontrar na história toda uma tecnologia desta verdade: levantamento de suas localizações, calendário de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz.


Exemplo desta geografia: Delfos, onde a verdade falava, fato que surpreendia os primeiros filósofos gregos; os lugares de retiro no antigo monarquismo; mais tarde, a cátedra ou do magistério, a assembléia dos fiéis. Exemplo desta cronologia; aquela que achamos de forma elaborada na noção médica de crise, e cuja importância se promulgou até o fim do século XVIII. A crise, tal como era concebida e exercida, é precisamente o momento em que a natureza profunda da doença sobe à superfície e se deixa ver. É o momento em que o processo doentio, por sua própria energia, se desfaz de seus entraves, se liberta de tudo aquilo que impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a ser isto e não aquilo, decide o seu futuro – favorável ou desfavorável. Movimento em certo sentido autônomo, mas do qual o método pode e deve participar. Este deve reunir em torno dela todas as conjunções que lhe são favoráveis e prepara-la, ou seja, invoca-la e suscita-la. Mas deve também colhê-la como se fosse uma ocasião, nela inserir sua ação terapêutica e combate-la no dia mais propício. Sem dúvida, a crise pode ocorrer sem o médico, mas se este quiser intervir, que seja segundo uma estratégia que se imponha à crise como momento da verdade, pronta a sub-repticiamente conduzir o momento a uma data que seja favorável ao terapeuta. No pensamento e na prática médica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeito de um ritual e ocasião estratégica.


Numa ordem inteiramente diversa, a prova judiciária também era uma ocasião de se manipular a produção da verdade. O ordálio que submetia o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de detectar a verdade e de saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de força que dava a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado conforme o regulamento indicava em proveito de quem devia ser feita a liquidação do litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma verdade oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autenticar as formas rituais na qual tinha sido suscitada. A verdade era o efeito produzido pela determinação ritual do vencido.


Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumento, mas é provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder"..

 

 

 

 

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 9 ed. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 113-114

 




Postagem Anterior Próxima Postagem