A Filosofia como Modo de Vida, de Pierre Hadot, me ensinou a "amar algumas verdades antigas”


 
Por Matthew Sharpe


Os livros que mais mudam a vida podem parecer que sempre estiveram lá. O que eles dizem pode parecer óbvio, depois que os lemos. Mas isso só acontece porque eles reformularam a forma como vemos as coisas.


O filósofo francês Pierre Hadot (1922-2010) começou sua carreira intelectual como padre estagiário e filólogo (um estudante de livros antigos), com interesse em formas de misticismo. No entanto, por meio de seus estudos e escritos filosóficos, ele se tornou mundialmente conhecido, exercendo uma enorme influência no domínio do estoicismo moderno.


A obra mais conhecida de Hadot é seu livro de 1995 A filosofia como modo de vida: Exercícios Espirituais de Sócrates a Foucault [tradução livre], baseado em uma coletânea francesa de 1981.


Cheguei a ele indiretamente em 2008, por meio da aula de um amigo universitário sobre autores que influenciaram o renomado filósofo Michel Foucault. Fiquei cativado quase que imediatamente.


Hadot nos diz nesse livro que seu objetivo é fazer com que as pessoas "amem algumas verdades antigas". No meu caso, e no de milhares de outras pessoas em todo o mundo, ele foi profundamente bem-sucedido.


Modos de vida


A filosofia como modo de vida argumenta que a maneira como pensamos sobre a filosofia atualmente, como a busca profissional de um pequeno número de especialistas, é algo relativamente recente.


Segundo Hadot, ser um filósofo no mundo antigo envolvia muito mais do que aprender técnicas especializadas de raciocínio, análise e redação. Os filósofos antigos adotavam o "modo de vida" de uma ou outra escola filosófica, seja ela platônica, aristotélica, estoica, epicurista ou cínica. Hadot escreve que os filósofos do mundo antigo se tornaram uma espécie de grupo cultural reconhecido e de certa forma "ousado". Até mesmo comédias foram escritas sobre eles.


Por sua vez, enfatiza Hadot, os filósofos tendiam a ver as pessoas na vida cotidiana como presas a medos desnecessários e desejos vazios. Como ele escreve, sem examinar nossas opiniões e as de nossas sociedades, vivemos uma espécie de "condição de vida inautêntica, obscurecida pela inconsciência e assediada pela preocupação".


Filosofias como o estoicismo não apenas desafiaram a maneira como os alunos pensavam, mas também os levaram a "reaprender a ver o mundo", como escreve Hadot (ecoando o filósofo Maurice Merleau-Ponty). Eles podiam tentar se tornar seres humanos menos agitados e mais sábios.


Filosofias de vida


Hadot não nega que os filósofos antigos tenham desenvolvido visões teóricas altamente complexas da natureza e da natureza humana. Ele passou décadas estudando os sistemas metafísicos da antiguidade posterior. Mas ele mostra que os filósofos antigos também buscavam extrair consequências éticas e existenciais desses entendimentos teóricos. Eles acreditavam que, como seres reflexivos, o que pensamos pode e deve mudar a forma como vivemos.


Então, considere o epicurismo. Se tudo no universo (como afirmavam os epicuristas) era feito de átomos materiais, enfatiza Hadot, isso tinha importância prática. Isso significava que não poderia haver divindades intervencionistas para as pessoas temerem. A morte também não seria "nada para nós". Pois ela será apenas a dispersão dos átomos que compõem nossas almas, que não estaremos mais por perto para vivenciar.


É claro que Hadot acredita que os estudiosos ainda devem analisar os componentes teóricos e técnicos dos textos antigos. A filosofia como modo de vida, no entanto, lança um desafio inconfundível aos leitores para que apliquem as ideias filosóficas antigas para melhorar nossa própria vida cotidiana.


Como Hadot explica seu método:

Se alguém diz diretamente, faça isso ou aquilo, está ditando uma conduta com um tom de falsa certeza. Mas graças à descrição de exercícios espirituais vividos por outra pessoa, permite-se ouvir um chamado que o leitor tem a liberdade de aceitar ou recusar. Cabe ao leitor decidir…

 

Exercícios espirituais


Hadot enfatiza que os filósofos antigos perceberam que é difícil para as pessoas desafiar velhas crenças, vencer emoções negativas e viver consistentemente à luz de suas crenças mais profundas e fundamentadas, devido aos muitos obstáculos e distrações da vida. Por isso, ele apresenta neste livro a sua ideia mais importante, porém controversa: a dos "exercícios espirituais".


Muitos textos filosóficos antigos, argumenta Hadot, só podem ser corretamente entendidos como envolvendo a recomendação e a prática de exercícios meditativos, cognitivos e imaginativos específicos pelos filósofos, cujo objetivo era transformar não apenas o modo como pensavam, mas o que sentiam e faziam diariamente.


No estoicismo, por exemplo, os alunos são instruídos a premeditar o pior que pode acontecer e a se preparar antecipadamente para as adversidades; aprendem técnicas para avaliar as situações e, ao mesmo tempo, colocam em xeque seus julgamentos subjetivos e passionais sobre as coisas e as pessoas; ou, ainda, são solicitados a imaginar seus problemas como se estivessem olhando para baixo de uma altura, para que possam apreciar o quanto cada um de nós (e nossos problemas) é pequeno na escala cósmica.


Filosofias como o epicurismo e o estoicismo, escreve ele, podem, portanto, "nutrir a vida espiritual de homens e mulheres de nosso tempo", apesar dos longos séculos desde que foram escritas.


Essas afirmações podem não parecer radicais. Mas a ideia de Hadot de que a filosofia poderia fazer algo "espiritual", em vez de intelectual - e muito menos nutrir a vida de homens e mulheres modernos - levou a muitas críticas. Hadot foi acusado de transformar a filosofia em "religião" ou de subestimar o lugar do raciocínio e da análise na disciplina.


Depois de mais de uma década de estudos acadêmicos de filosofia, o argumento de Hadot foi uma revelação para mim. Seu argumento era que livros como as Meditações de Marco Aurélio não fazem sentido a menos que reconheçamos que, neles, estamos testemunhando um filósofo trabalhando suas ideias teóricas (nesse caso, o estoicismo) em um regime diário, para lidar com os detalhes de sua vida: desde pessoas que se comportam mal até seus próprios desejos e medos.


Em vez de perseguir incessantemente a originalidade teórica, a filosofia - nesse modelo antigo - trata de nos desafiar a viver de forma mais plena, mais racional e mais humana.


Para Hadot, o “poder fascinante” das Meditações, por exemplo, reside justamente no fato de que, ao lermos esse texto, “temos a sensação de testemunhar a prática de exercícios espirituais – capturados ao vivo…”. Estamos testemunhando, argumenta ele, “alguém no processo de treinar-se para ser um ser humano”.


Essa descrição da filosofia como algo que fala de preocupações cotidianas, mas fundamentais, ressoou em mim. De fato, a Filosofia como modo de vida me levou a ler os antigos estoicos, liderados por Epiteto e Marco Aurélio, como fontes de exercícios e orientação na vida cotidiana, bem como objetos de pesquisa profissional. Minha esposa e eu até chamamos nosso filho de Marcus.


Algum tempo depois, me envolvi na comunidade global do estoicismo moderno, contribuindo para eventos, blogs e revistas. Nos anos da COVID, tornei-me membro da equipe organizadora do evento Melbourne Stoicon-X, que reúne australianos interessados no estoicismo como estilo de vida todo mês de outubro para discutir essas ideias antigas e compartilhar experiências.


Nada disso teria acontecido se eu não tivesse encontrado o livro de Hadot.


Dar vida a ideias antigas


Ler A filosofia como Modo de Vida é como receber as chaves de uma série de conversas maravilhosas sobre a melhor maneira de viver que foram amplamente esquecidas, mas que floresceram (no Ocidente) desde Platão, pelo menos, até Michel de Montaigne.


Ao nos pedir para reconsiderar textos dos filósofos epicuristas, estoicos, platônicos, cristãos e renascentistas, o maravilhoso livro de Hadot abre um tesouro de exercícios práticos, que falam diretamente às adversidades que a sorte nos apresenta.


Talvez nem todo mundo precise de um livro como esse, e isso é admirável. Mas muitas pessoas em nosso mundo instável podem se beneficiar, como eu fiz, ao manter um exemplar de A filosofia como Modo de Vida em suas prateleiras, aprendendo com ele a amar algumas verdades antigas.


Artigo postado em TheConversation e traduzido por Papo de Filósofo®


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