Futebol: Entretenimento ou jogo de guerra?

 

Por Vânderson Domingues*

Desde os anos de 1990 tenho algum contato com jogos de futebol e acompanho a violência que acontece entre torcidas nos estádios e ou fora deles. Lembro, desde aquela época, do episódio muito discutido de 1985 dos hooligans ingleses (conhecido como Tragédia de Heysel) que causou a morte de dezenas de pessoas e deixou centenas de feridos¹. Porém, apesar de tragédias com mortos e feridos continuarem acontecendo com frequência, dois argumentos muito comuns entre comentaristas esportivos brasileiros é que a violência seria apenas parcial – de uma pequena parte de marginais infiltrados nas torcidas organizadas – e que os “verdadeiros” torcedores não seriam violentos. Há uma alusão recorrente, inclusive, de que a “verdadeira” torcida seria toda a família e que esta se afasta dos estádios por causa do comportamento de poucos.

Bem, quase 40 anos se passaram desde o fatídico episódio em Heysel e o problema da violência persiste. Na verdade, a violência se espalhou pelo mundo do futebol e o termo hooliganismo passou a se referir a este tipo de fenômeno. É claro que qualquer violência social não tem apenas uma causa, mas me parece que há um estado de negação de certos grupos – no caso o ambiente futebolístico – que com sua omissão ajuda a produzir sujeitos e ou coletividades problemáticas. Em outras palavras, é possível pensarmos a violência advinda do mundo futebol sem responsabilizarmos essa atmosfera?

Nessa perspectiva, acho que vale uma pequena reflexão sobre um aspecto do mundo do futebol, a linguagem. O que sempre me chamou atenção, mas nunca vi comentaristas esportivos tocarem no assunto, é a quantidade de símbolos de guerra e afins que atravessam o universo futebolístico, a contar de seus primórdios, segundo alguns pesquisadores, em que "os ingleses adquiriram o hábito de chutar uma bola de couro, símbolo da cabeça de um membro do exército da Dinamarca, como forma de comemorar a expulsão dos dinamarqueses de seu país"². Há quem afirme ainda que os primeiros "jogos de futebol" teriam acontecido na China (2197 a.C) com a cabeça dos inimigos derrotados para "fins de treinamento militar"³, mas o que se sabe é que "a cabeça humana teria inspirado a bola"4.  

Mas não para por aí. Do final do século XX para cá, no Brasil, os nomes dos estádios têm sido comumente nomeados de arenas. E arena, vale lembrar, é uma palavra do latim utilizada no Império Romano que remete a um lugar onde gladiadores lutavam. O nome arena, portanto, vem de uma área com a superfície coberta de areia que servia para absorver o sangue dos gladiadores5

E tem mais. Se pensarmos nas posições que os jogadores ocupam em campo e nas jogadas que acontecem em uma partida, temos diversas nomenclaturas com sentido militar. Por exemplo, a palavra flanco é utilizada para se referir a lateral do campo. Na linguagem militar “flanco” significa a parte lateral de uma tropa formada ou um "local de acesso que pode ser atravessado ou conquistado"6O goleiro, por sua vez, é historicamente sinônimo de arqueiro, ou seja, palavra que também significa soldado medieval armado com arco. Já o meia-armador é o jogador do meio de campo que “arma” as jogadas e também significa um antigo título dos “chefes de expedições militares”7. Sem falar em outros nomes que sugerem uma linguagem bélica como ponta de lança (segundo atacante), tiro de meta, tiro livre, tiro penal (pênalti), tiro de canto (escanteio) etc.

Mas o jogador mais venerado geralmente é o atacante que faz muitos gols, também chamado de artilheiro ou até mesmo de “artilheiro matador”. Na linguagem militar, artilheiro é o soldado da artilharia que, por sua vez, é “o instrumento de força que origina efeitos morais e materiais que vão da neutralização à destruição”8.

É interessante olharmos também para a organização simbólica da identidade dos clubes que se assemelha aos reinos da idade média que carregam escudos com brasões e ou mascotes que muitas vezes remetem a figuras lendárias, mágicas e ou mitológicas de poder que travam lutas épicas com seus adversários.

Nesse contexto, os jogadores (e mais recentemente, as jogadoras), são vistos(as) como mais do que simples atletas de alta performance, mas como representantes míticos(as) idealizados(as) que devem cumprir a jornada do herói e ultrapassar obstáculos para que se tenha o retorno triunfal da volta para casa9, para os braços de sua nação (referência comum aos times e suas torcidas) que deve ser defendida com suor e sangue. Isso quando a saga dá “certo”, mas geralmente a jornada do herói pode incluir realização e fracasso, alegria e frustração que geram êxtase, mas também fúria por parte de torcedores.

Essa aderência de torcedores que oscilam entre alegria e frustação de acordo com a trajetória de seus clubes, nada mais é do que uma manipulação das massas que parece sempre ter funcionado muito bem no Brasil. Ou será que esquecemos como a camisa da seleção brasileira tem sido sistematicamente apropriada como símbolo de brasilidade, como “pátria de chuteiras”, há décadas?10. E ainda hoje a camisa da seleção brasileira e tudo que esta evoca tem sido utilizada para exaltar um suposto patriotismo ultranacionalista, que faz com o(a) torcedor(a) se identifique e projete sua realização pessoal no futebol e ainda a misture com sua posição política11.

Podemos dizer então que uma partida de futebol se dá através de uma tática que imita a performance bélica de uma tropa militar em guerra com outro grupo? É possível dizer que esse modelo de entretenimento repleto de símbolos que imitam uma estratégia mítica-militar pode mexer de algum modo com o imaginário dos espectadores em busca de uma espécie de apoteose? Parece que sim. Nesse caso, sem ignorar que parte de algumas torcidas organizadas se tornaram verdadeiras gangues, como podemos atribuir a violência a um pequeno grupo quando a própria linguagem** do futebol demonstra animosidade ao adversário que é tratado muitas vezes como inimigo? E mais, podemos dizer que o abuso no futebol é algo restrito quando dirigentes e jogadores também reproduzem violências?

É claro que há de se argumentar que o futebol e suas respectivas rivalidades seriam um modo civilizado de se fomentar uma “guerra” entre “nações”. Mas se essas provocações entre torcidas fossem somente chistes em meio ao entretenimento, onde perder ou ganhar fosse visto apenas como parte do processo, um exercício de celebração coletiva, e não fosse mais do que isso, deveríamos mesmo ter constantes casos de violência deliberada?

Nesse sentido, há que se destacar também que a violência não se restringe aos torcedores entre si, mas também é dirigida a atletas. Casos como o emblemático episódio da jogadora espanhola Jenni Hermoso, campeã da copa do mundo em 2023, beijada contra a sua vontade pelo presidente da federação espanhola no ato de receber a medalha12, o racismo recorrente sofrido pelo jogador brasileiro Vini Júnior por parte da torcida espanhola13 e os xingamentos homofóbicos destinados a jogadores de modo geral como tentativa de causar constrangimento e perda da concentração apontam na direção de um problema sistêmico. 

Além disso, há outros tipos de violência no mundo do futebol, como recentemente temos visto, promovidos por jogadores, técnicos e dirigentes brasileiros acusados e ou condenados por estupro e assédio. E mais grave, o comportamento institucional que incita sua normalização, sem nenhuma ação clara do que será feito diante disso, como se simplesmente não fizesse parte do mundo do futebol, ou seja, como se fosse apenas um problema do caráter individual de cada profissional14Em outras palavras, o que temos entranhado no mundo do futebol é uma cultura da violência, conceito que a filósofa Hannah Arendt definiu como “a condição em que a violência é considerada uma maneira legítima de resolver conflitos e as pessoas se tornam insensíveis à violência”15 e um discurso ambíguo que, por um lado permite e se favorece do engajamento provocado por essa cultura e, por outro, afirma não ter responsabilidade pela violência que se produz em seu próprio meio esportivo. 

E convenhamos, para quem interessa ignorar essa linguagem mítica e belicosa em vez do combate a violência generalizada que ela alimenta? Obviamente, as grandes marcas que patrocinam o futebol e querem lucrar. Já se propôs o fim das torcidas organizadas com o argumento de que elas são usadas para esconder delinquentes. Mas terminar com torcidas organizadas pode significar diminuição dos lucros das marcas e também da capitalização dos clubes. Ou seja, na prática estamos provavelmente falando de danos colaterais “aceitáveis” em nome do lucro que inclui, inclusive, um jogo duplo da imprensa esportiva e dos canais de transmissão que da mesma forma se beneficiam financeiramente e fazem discursos politicamente corretos e quase nenhuma proposta de ação efetiva16. 

Enquanto o ambiente do futebol continuar negando sua responsabilidade, colocando a culpa em meia dúzia de “torcedores infiltrados”, como se a questão fosse meramente de segurança pública e ou do caráter de cada um em vez de trabalhar a desconstrução de sistemas de crenças violentos que permeiam seu meio, dificilmente teremos uma mudança desse modus operandi 17. É claro, como disse antes, que as causas da violência são múltiplas, mas aqui parece que além da própria linguagem que retroalimenta comportamentos e das críticas de vitrine por parte da mídia, estamos falando também do machismo (no caso dos estupros, abusos e agressões sexuais) e do racismo, mas que, sem dúvida, são reproduzidos e normalizados pelo mundo do futebol.

É nesse ponto que o mundo do futebol falha miseravelmente. Ao permitir que o lucro fale mais alto e que todo tipo de violência se reproduza como se nada fosse de sua alçada em vez de promover uma cultura da paz, permite que o esporte nunca seja para “toda a família”, mas que continue sendo um ambiente que mais se aproxima a uma bomba-relógio prestes a explodir a qualquer momento. E ela explode, de tempos em tempos, muitas vezes nas mãos de pessoas vulneráveis.

* Vânderson Domingues é psicanalista existencial, professor de filosofia, escritor e compositor. Fundador do Papo de Filósofo®.

** não estou afirmando que a linguagem causa os comportamentos de violência, mas, nessa situação, que coincide com o modo de ser deste universo.

*** Texto iniciado em 2013 e revisado e concluído em Abril de 2024.

Referências:

1 - Violência no futebol / A tragédia de Heysel e o ápice do hooliganismo 

2 - História do Futebol 

 3 - História do futebol  

4 - Quem inventou a bola? 

5 - Arena

6 - Flanco 

7 -  Armador (marinha)

   - Regras do Futebol 

8 - Artilharia

9 -  Monomito 

10 -  A seleção que ‘presenteou’ a ditadura com uma taça 

11 -  Como a camisa e cores da seleção brasileira viraram símbolo do bolsonarismo 

12 -  Presidente da Federação Espanhola dá beijo em jogadora após o título; atleta se incomoda 

13 -  'Não foi 1ª, 2ª ou 3ª': 10 vezes em que Vini Jr. foi vítima de racismo na Espanha 

14 -  Condenado por estupro, Robinho deve ficar ao menos três anos preso em regime fechado  

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   - Rogério Caboclo é afastado da presidência da CBF após denúncia de assédio sexual e moral

   - Paulo Roberto Falcão é denunciado por suspeita de importunação sexual por funcionária de apart hotel no litoral de SP  

   - Cuca: entenda mais sobre o caso do estupro de jovem, em 1987 

15 - Hannah Arendt e a cultura da violência

16 - Luta contra violência no futebol lembra o filme Feitiço do Tempo 

17 - Punição, prisão e banimento: o que fazer para combater a violência nos estádios?

   - O que a Inglaterra fez para reduzir os casos de mortes e violência no futebol?

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